quarta-feira, 7 de novembro de 2018


A Voz do Povo
Márcio Barker



pinterest


Mal iluminada, suja, poças d'água.
O local é uma zona portuária que, como todas as zonas portuárias é um universo particular.
O caminhante vai zanzando, dependurado em seu cigarro já meio fumado.
Embalado, e distanciado de suas tristezas pelo álcool, ele cantarola uma canção. Ela fala de amores, desamores, desencontros sentimentais, de mulheres inalcançáveis, amores impossíveis. Já é meia madrugada, e aquele boêmio não tem pressa de regressar. Talvez até se pergunte, ''para onde''?


Senta numa mesa, de um dos infinitos bares ordinários, sujos. Mas um universo de sentimentos, olhares perdidos, paixões, que o bandoneon e a guitarra traduzem em magníficos tangos.
Era a Buenos Aires das primeiras décadas do século vinte.




whereyart.net

Na avenida, o cortejo segue firme. Algumas pessoas empurram um pequeno carro, onde está o caixão de quem morreu. Atrás, rostos duros, tristes, lágrimas, inconformismo, tristeza, almas abandonadas pela tristeza. Mão com mão, mão no ombro, mão que afaga uma cabeça desconsolada. E, lá atrás, a música triste, que fala de uma angústia inconformada pela partida.
O som de uma tristeza cortante, induz as lágrimas, os lamentos, a dor. Trompete, trombone, clarinete, banjo e o whasboard, dão o tom. É a banda.
Tudo é inconformismo, pela perda, pela partida, pela ausência.
E, compasso por compasso, a banda exalta aquela dor. É o respeito diante da morte.
O caixão desce a tumba em meio a orações e lágrimas de todos. Uma última flor é jogada. Depois pás de terra selam o final de mais uma existência.

Rebirth brass band
Então, como mágica, na volta, a banda toma a frente, tocando, por exemplo a alegre ''When the saints go marching in''.
Atrás, o cortejo toma outras cores. As cores da alegria, felicidade, esperança, exaltação. Todos dançam, riem, pulam, sorriem, e a banda, compasso por compasso, exalta aquela alegria.
O som é de uma  felicidade contagiante, que induz os corações a pulsarem vida.
Sim!!! É a alegria pela continuidade da vida...seja aqui...seja em outra dimensão, porém, vida!
New Orleans, na mesma época, comecinho do século vinte.

fotosearch



O clima é quente. No ar respira-se as cores do local. Morros verdejantes de um lado. O mar de outro.
Despojado, aquele rapaz caminha pela calçada, da rua de um bairro periférico.
Alegre, cuida bem de sua companhia. Sim, a companhia que estará ao seu lado, para falar de amor e desamor, mas em tons leves. Também, para falar do doce cotidiano descompromissado, humorado, engraçado, de um ser que, como ele, pupula pela cidade bonita, colorida, iluminada e alegre. Aquela companhia, daquele rapaz, também o ajuda a ter esperança, e não deixar a vida desandar: o violão. O mesmo violão que poderia ser um ''passaporte'' para a cadeia, já que, na época, ''era coisa de vagabundos''.
nosso.jor.br

Logo, ele encontra amigos, que, numa esquina, ou varanda farão aquela bela roda de risadas, cervejas e muita música.
Ali reunidos, cada qual empunha seu instrumento. Pode ser flauta, violões, cavaquinho, bandolim, pandeiro, quem sabe um acordeon, dizem que até piano. Mas fiquemos nos cinco primeiros. Sim, mais baratos, leves e, nem por isso, menos virtuoses (claro, desde que em boas mãos).
E, entre um ''vamos tocar essa'', e ''vamos tocar aquela''. Alguém lembrou de um violonista virtuose e  compositor inspirado.
João Pernambuco.
Rio de Janeiro, na mesma época. Inicialzinho do século vinte



Rosa Carioca, com Leandro Carvalho











terça-feira, 9 de outubro de 2018

Noel Rosa


Noel Rosa
Márcio Barker

google


Viveu bem pouco, mas...viveu!!! Os poucos anos vividos por Noel Rosas, valeram por muitos mais.
É de se perguntar, como um camarada que chegou apenas aos vinte e seis anos, pode deixar composições incríveis. Ele foi um cronista de seu tempo. Irônico, humorado, satírico, romântico, aliás, diga-se de passagem que, seu romantismo ia bem além da simples rima, ''dor'' com ''amor'', aliás surradíssima.
Mas, se Noel se notabilizou com um romantismo praticamente único, ele também soube falar, e muito bem, das coisas do cotidiano.
A inspiração de Noel estava nos seres humanos com quem cruzava, em seu dia a dia carioca.
De coisas praticamente banais, desapercebidas, simples, sem importância, Noel Rosa sabia tirar a essência para composições únicas.
Exemplos não faltam. E, um ótimo exemplo está numa passagem que ocorreu com Noel, na cidade de Campos, no Rio de Janeiro.
Conta-se, que numa excursão naquela cidade, alguém se aproximou, e pediu uns dez mil réis, a Noel Rosa. Pediu emprestado, e que, na semana seguinte pagaria.
Noel emprestou.
Passou uma semana...bem, na verdade foram várias as semanas passadas, e Noel nunca mais viu quem pediu, e muito menos os dez mil réis.
Se isso acontecesse comigo, ou com você, é bem provável que, no mínimo iríamos espumar de raiva.
Mas Noel era Noel. Esse fato desagradável serviu como inspiração, para um ótimo samba, em forma de carta: ''Cordiais Saudações''.
Ouçam, e divirtam-se com o humor e inteligência de Noel Rosa



Hilário apesar de trágico

Hilário apesar de trágico
Márcio Barker

Desenho de João Pinheiro


1 - Daí, na subida do morro, ele fica sabendo que bateram na mulher dele. Que absurdo! Pois não se pode bater numa mulher que não seja a sua. Como não gostou daquele assunto, já foi dizendo pro valentão: ''venho resolvido a mandar você para a cidade de pé junto, vou lhe tornar em um defunto''.

2 - Fantasiado de pintor, ele desembarca no aeroporto. E, logo impressiona a platéia, pintando triângulos redondos e um quadrado todo oval. Detalhe: não pintava nem nos muros da Central.

3 - Ganhou na loteria, pagou as dívidas e comprou um avião azul, para viajar pela América do Sul...quanta felicidade...mas tudo termina num chocoalhão da mulher, que o acorda para ir ao trabalho.

4 - No meio da calçada, ele tenta vender pomada pra calo, sabão pra coceira que é um desacato. Mas avisa que, se o calo não sair em quinze dias como a pomada promete, o senhor pode arrancar-lo a canivete.
Mas tudo ia bem, até aparecer um guarda impertinente.
Ele tenta argumentar: ''Mas seu guarda, só tô me defendendo.''
E o guarda: ''Neca, que a cana é dura, e você vai comigo''.

5 – E a nega Risoleta então? Mas que falseta! Por ciúmes, quebrou o seu chapéu de palhinha, de abinha bem curtinha, presente da Rosinha. E, de quebra, rasgou o melhor terno que tinha, comprado a prestação, por preço de ocasião, do Salomão.

Histórias, histórias. Sem dúvida hilárias, apesar de trágicas. Histórias de universo que fica à margem, das luzes das metrópoles, que revelam uma gente que, como qualquer outra, respira, trabalha, ama, tenta sobreviver, pese tanto sofrimento, dureza, preconceito, abandono. Universo, onde vivem pessoas como eu, e você, mas que, ou têm a pele mais escura, ou não tiveram a nossa sorte, de ter acesso a oportunidades que a sociedade oferece para crescer.
É um universo que vive a margem da megalópole, ignorada pela megalópole, esquecida da megalópole. Lembrada apenas por histórias trágicas, contadas em na mídia sensacionalista, a troco de uma audiência masoquista. Lembrada também, pelo populismo safado, em tempos de eleição. Histórias de uma gente, cujo dia a dia, é um desafio para sobreviver, a custa de muita imaginação, improviso e, por vezes, com boas pernas para escapar da polícia.
São histórias, verdadeiras crônicas ou pinturas, contadas pelo samba de breque, numa linguagem simples, colorida, direta, diferente e humorada...apesar da tragédia que estão em suas entre linhas.
E, sem dúvida, o grande herói do samba de breque é Moreira da Silva, que, como poucos, trafegou naquele universo, que tão bem soube retratar.

letras.mus.





segunda-feira, 1 de outubro de 2018

Vagabundagem em Alta


A Vagabundagem em Alta
Márcio Barker



Passo do malandro - Lia Snaders


''Trabalho igual ao meu
todo mundo quer,
mas nem todos podem arranjar.
Pego as onze horas,
largo ao meio dia.
E tenho uma hora pra almoçar.
Não há coisa melhor,
do que não fazer nada,
e depois descansar.''

Ismael silva


Rio de Janeiro, primeira metade do século passado.
E, lá vai ele, caminhando por uma rua qualquer. Na cabeça, algumas perguntas: a sua próxima refeição, do que seria? Onde seria? E como consegui-la?
As respostas eram vagas. De concreto, apenas o apetite, com o melhor dos tempêros: a fome.
O terno branco de linho e o chapéu panamá, ou de palha, ajudavam a amenizar o calor carioca. Por de trás da elegância do terno, do sapato bicolor, da gravata, do cravo na lapela, lá vai indo mais um infeliz, marginalizado.
Quem sabe morador dos antigos cortiços do centro da cidade, que foram derrubados em nome do progresso, e depois morador num barraco, dependurado num morro.
Sem emprego fixo, sem moradia descente, vivendo de bicos, ou de pequenos e indolores golpes. Debaixo do braço o violão, companheiro do samba no boteco, seresta, ou na cela, na delegacia. Dono de extensa ficha na polícia, pelo crime de vadiagem.
Lá ia ele pensando na sua próxima refeição e, primordialmente, como consgui-la. Puxa!!! Não era fácil essa tarefa diária, de sucesso duvidoso, incerto... Algumas vezes uma carteira, num bolso distraído, num bonde. Ou aquele amigo, que por acaso encontra no sentido contrário, na mesma calçada, ou ainda, aquela amiga, que palavras doces, e mãos sedutoras, conseguem arrancar uma ''ajuda''.
Lá vai ele, o malandro, o anti-herói, que faz da vagabundagem a arte da sobrevivência.
Como arma, usa sua simpatia, voz macia, gestos elegantes. Inpossível resistir. Ou em casos extremos, um belo par de mãos invisíveis, leves, ágeis, capazes de operações inimagináveis, no aperto do bonde vespertino. Detalhe: sem causar maiores traumas ao incauto, o dono da carteira. Um verdadeiro mágico da mão leve, rápida, insensível. Que beleza! Mais um dia salvo, mais uma, ou duas, refeições ganhas. Mais algumas cervejas, para animar um bom papo, até o galo cantar, anunciando o amanhecer.
Bem, já é hora de deitar.
Viva o malandro!



sexta-feira, 28 de setembro de 2018

Ode ao Malandro II


Ode ao Malandro II
Márcio Barker

salveamalandragem


Chapéu estilo ''panamá'',
geralmente de lado.
Terno branco, de linho.
Impecável.
Gravata, quem sabe vermelha.
Cravo na lapela.
Ou então camisa listrada.
Lenço no bolso do paletó,
ou no pescoço.
Sapatos bilcolores
Perfumado.
Rosto tranquilo,
fala macia.
Mãos finamente tratadas.
Mãos que seduzem, que encantam...
que acariciam...
Simpático,
bom de papo,
bem penteado.
Olhar sedutor, cativante,
impossível de ser resistido.
Daí o seu sucesso com desavisadas donzelas.
Usa até desodorante.
Andar tranquilo e gingado.
Era o malandro à antiga.
De pequenos golpes,
indolores...imperceptíveis.
Mãos de veludos sequestrando,
desavisadas carteiras,
em desavisados bolsos.
Nada mais desejava senão viver.
Sem fazer mal a ninguém,(na medida do possível)
e viver em paz.
O maxixe e o samba eram sua orações.
O violão, o grande companheiro.
Era o malandro ágil, bom de pernas,
pra ganhar a corrida da polícia.
Era ele, o grande herói no imaginário.
Chapéu de lado.
Tamanco arrastando,
navalha no bolso,
passando gingando,
provoca e desafia,
e, sem dúvida,
sentindo orgulho em ser tão vadio,
como bem o descreveu,
o compositor malandro Wilson Batista,
em ''Lenço no Pescoço''





quinta-feira, 27 de setembro de 2018

Ode ao Malandro - I


Ode ao Malandro - I
Márcio Barker

(devotosdacachaça)


                         Nas vitrines das grandes companhias de navegação europeias, não raro havia um aviso. Dizia mais ou menos assim: ''Vá a Buenos Aires, sem passar pelos focos infecciosos do Rio de Janeiro''.
Havia verdade naquele anúncio.
Estávamos já no início do século vinte, e a capital federal brasileira sofria de muitos males.
Eram várias as pestes, saneamento básico quase inexistente, moradia insuficiente, enfim, a coisa era séria.
Quem se aventurasse a ir para a capital federal, no início do século passado, não tinha sequer um porto descente, para desembarcar. Os navios atracavam ao largo, e os passageiros eram levados em botes, até a terra.
Aquela situação não era a de uma capital federal. Algo deveria ser feito.
Foi quando o paulista Rodrigues Alves, recém eleito presidente da república, nomeou o carioca Francisco Pereira Passos, como prefeito da cidade. A ele caberia a total remodelação da capital federal, para uma estrutura digna de seu  status.

multirio.rio.rj.gov
A população da cidade crescia, aos milhares chegava gente vinda de todos os lados, em busca da esperança. Migrantes estrangeiros e de outros estados do Brasil.
O Rio de Janeiro parecia acenar de longe, para toda aquela gente. Além disso, a abolição da escravatura jogou em suas ruas, um grande número de desesperançados que perambulavam pela cidade, em busca da sobrevivência dura e dolorosa.
Entulhados em sórdidos cortiços, aquela gente sobrevivia como podia, em meio a condições precárias de higiene. E, coisa que não faltava eram doenças e epidemias.

multirio.rio,rj.gov
Aquele centro da capital federal era tudo, menos o que deveria ser.
O genial Pereira Passos começou com o ''bota abaixo''.
Centenas de velhos cortiços, casarões decadentes foram postos a abaixo. Ruelas estreitas e féditadas desapareceram, dando lugar a avenidas e belas ruas, agora chamadas de boulevards Em quatro anos, o prefeito carioca, Pereira Passos realizou uma mágica. De ''cidade da morte'' o Rio de Janeiro passou a ser a ''cidade maravilhosa.
Grandes avenidas, belos edifícios ao estilo parisiense, uma urbanização impecável. Agora, com amplas avenidas, belos jardins, a cidade respirava.

Municipal RJ

Mas...pois é, sempre tem um ''mas''. Mas e os milhares que viviam e sobreviviam nas centenas de cortiços postos abaixo? O que foi feito deles?
Para aquela gente, que foi empurrada em nome da ''higienização'' da capital federal, sobraram os morros e o mangue. Berço da marginalidade. E de um personagem lendário: O Malandro.
Um deles não deixou de protestar. Foi José Barbosa da Silva, o Sinhô, que se auto intitulava como o ''Rei do Samba''.
Negro, elegante, pianista, malandro, cantor e compositor, escreveu, em 1929, ''A Favela vai abaixo''. Aqui, numa versão moderna



quarta-feira, 19 de setembro de 2018

A voz macia e o vozeirão


  A voz macia e o vozeirão
Márcio Barker





Nas primeiras décadas do século passado, fosse no rádio ainda nascente, nos teatros de revista, em reuniões no fundo de algum quintal, ou mesmo nas serestas pelas ruas a fora, o romantismo dava o tom.
Nomes como do compositor, e intérprete Gastão Formenti, Vicente Celestinho, ou compositores como Catulo da Paixão Cearense, entre tantos outros, hoje são símbolos de um romantismo quase levado às últimas consequência.
Gastão Formenti
Versos como esse, eram a tônica.


Na Serra da Mantiqueira.
Sob a fronde da mangueira
Que ela em moça viu plantar.                                          
Sentadinha no seu banco.
La na encosta do barranco.
Mãe Maria vai sonhar.
(Na Serra da Mantiqueira – G. Formenti)


Composições como esta, com versos rebuscados, palavras ''difíceis'', que demonstrava um esfôrço na erudição, eram interpretadas com voz empostada, repleta de longos graves e agudos, onde também eram fartos os trêmulos e vibratos.
Era o modo de cantar de toda uma época, quem sabe vindo das árias operísticas, e até, operetas.
Mas, já nos anos vinte e, principalmente na década de trinta, a coisa mudou.
Estava surgindo um novo tipo de cantar, e que se adequava como luva, ao samba do Estácio, surgido no início dos anos trinta, no bairro do Estácio de Sá, Rio de Janeiro.
A seguir, um interessante exemplo, desses dois modos interpretativos, numa mesma gravação.

Mário Reis
Francisco Alves



                                                            








De um lado Mário Reis, que inovava com sua bossa, voz macia e leve. De outro, a voz forte de Francisco Alves, com seus vibratos e longos agudos e graves,  que é um exemplo do modo interpretativo que marcou toda uma época O ano é 1930, quando gravaram a marcha carnavalesca ''Formosa'', de J. Ruy e Antonio Nassara.
Ouçam.

(imagens - internet)

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